Ah, o Jogo de Interpretação de Papéis. O teatro da vida não tão real. É a hora e a vez onde todo mundo resolve desincorporar-se, deixar de ser aquela pessoa que paga contas, que pega o ônibus, que fuma cigarros nos lugares preestabelecidos por lei para serem malvados, fuderosos, gostosos e maldosos seres da noite sedentos por sangue, volúpia, sexo e poder. Mais ou menos como o Clube da Luta, só que sem aquela coisa toda de troca de fluídos obrigatória que envolve a atracação com roupa (o que, na grande maioria dos casos, não impende uma atracação com ou sem roupa e troca de fluídos depois do evento).
Mas no mundo dos live-actions, encontros de RPG e demais convenções sociais onde podemos colocar roupa de inverno em pleno verão paulistano, a duas coisas nos habituamos: à regra (sempre observada, quase sempre cumprida) de abstinência alcoólica e sexual (embora em ambos os casos a visão de uma mocinha de corset, um galã com cara de predador sexual, ou de uma garrafa de Eisenbahn nos abre a saliva) e a batalha interna entre estar dentro do personagem e o senso comum de que você tem mais de 22 anos e está representando com a sinceridade e a espontaneidade de quando você interpretou uma árvore na peça sobre laticínios no Pré-Escolar.
Nessas horas, nesse nosso grupo de amigos nerds de improviso controlado, acaba surgindo sempre o mesmo caso inconveniente: o overacting. O Toreador com um pé no almodovarianismo e o outro também, o Ventrue “Sou playboy, filhinho de papai, me afundo nessa bosta até não poder mais”, o Malkaviano de Pantufas (que ainda vai ganhar um estudo na Universidade de Cornell apenas para este caso), o Tremere Chessmaster e o Brujah PunkRockerHardcoreRevoltadoRageAgainstTheMachine. Estes arquétipos, embora válidos e constem dentro das linhas gerais de descrição em todos os livros, são apenas uma caricatura dos personagens em um ambiente vivo como acontece em jogos de verdade.
O risco de fazer um overacting é, em um primeiro instante, você ficar marcado como o jogador canastrão que não leu nada mais que um resumão daqueles que se vendem em banca para concursos, o que te transforma em um maldito jogador casual (e ninguém gosta de malditos casuais numa mesa de longo prazo). Segundo ponto: por você fazer um personagem tão bidimensional e descomplicado, a sua longevidade no jogo pode diminuir drasticamente, uma vez que você vai virar um bucha de canhão porque não dá pra confiar em alguém que possui inimigos diretos e declarados.
Mas não é o fim do mundo. É possível evitar a galhofagem e o overacting que tanto broxam jogadores, mestres e possíveis jogadores a longo prazo. Cara, meu primeiro conselho é: relaxa. Você não é o Nicolas Cage. Só por isso abra as mãos, estenda-as aos céus e agradeça sua sorte. Você não está tendo que provar nada pra ninguém, não está lá ganhando um centavo por sua participação. Em todo o caso: você não está em um grupo amador de teatro (e nada o impede que procure um caso goste de interpretar um papel). Você está lá apenas para responder às respostas do seu personagem. Se alguém pisa no seu pé, te tira do sério, haja como agiria o personagem, pura e simplesmente. Já dizia Freddie Mercury: “Surrender your ego, be free – be free to yourself”.
O segundo conselho fica para os narradores, que se fundamenta em 3 coisas: ambientação, ambientação, e ambientação. Certo – você conseguiu a casa, conseguiu os jogadores, conseguiu uma história até que decente, que geralmente envolve mitos históricos e folclóricos de seu CEP. Agora, meu filho, é a parte mais difícil: faça com que seus jogadores entrem no espírito da coisa (sempre de maneira saudável, nunca canso de frisar. Não queremos processos ou oficiais de Justiça na sua porta, queremos?): coloque uma música adequada ao ambiente e ao momento da história, conte uma história, reúna o povo em uma roda e dê uma de Joel Santana, isso fica a seu critério. Mas, pelo amor de Gary Gygax – COLOQUE SEUS JOGADORES DENTRO DO SEU JOGO!
De todas as boas experiências em live-action que tive nesses anos nesta indústria vital, sempre respeitei duas coisas: Narradores que se esforçavam para colocar o jogo no clima certo a ponto de nascerem cacoetes e idéias fixas depois das sessões, e jogadores que paravam uma cena, olhavam direto nos olhos e diziam “Role play, mermão. Role play!”. Isso é que dá tesão para continuar o jogo: é a possibilidade de encontrar um bom roteiro e poder crescer com ele: pronto, você já está um passo à frente do Nicolas Cage. Até hoje, graças às divindades do D10, não encontrei um jogo onde o pessoal estivesse interpretando como se fosse num filme do Ed Wood por mais de um live-action e sobrevivesse.
Saiba que, sim, é um costume entre narradores, Mestres de Jogo e alhures darem pontos extras para interpretação em eventos assim. Sinta o personagem, suas ações cinco minutos antes de cada live – como ele acordou, como se vestiu, o que pensava no caminho ao local de reunião. Mas não erre na mão quando resolver incorporar aquele seu personagem atormentado e meio demente e ficar babando no pescoço daquela menina de 19 anos que está jogando seu primeiro live sem ter hora pra voltar. Não confunda boa atuação com stalking ou overacting, caso contrário você corre o risco de ser educadamente convidado a ir fornicar um cachorro do outro lado da cidade da próxima vez que perguntar “quando vai ter live?”.